![]() |
| Museu de História da Catalunha, 2024 |
Do mais inacessível do caráter obsceno, é daí que nasce, segundo o bondoso Canuto, a vertente que mais tarde se consubstancia no voto racista. Desta vez ele estava disposto a falar um pouco mais. Deixou sua sapataria como costumeiramente faz, e com sua boina de republicano espanhol – ele me garantiu que era – me viu em uma das mesinhas do Alma, puxou uma cadeira e sentou-se. É mais fácil encontrá-lo andando pelas cercanias, tomando umas biritas no bar da esquina, ou com algum conhecido em uma das lojinhas da galeria, do que em sua sapataria. A galeria preserva profissionais raros de se encontrar na grande cidade. Um pouco acima de sua sapataria, o barbeiro Muniz, sempre com seu jaleco branco. Aprecio o seu silêncio e seu capricho, fico ali sentado mais de hora enquanto ele realiza com a tesoura os contornos e os aparos. Cortei hoje, nunca sei se está de bom ou mal humor.
Mais acima, uma pequena loja com queijos de todos os tipos e origens. Lá no fim, antes da curva para a outra saída, o alfaiate Jessé, baiano de quatro costados, trabalha na sobreloja e faz do térreo um expositor de seu trabalho artesanal. Por certo nenhum deles deixará herdeiros, quando morrerem ou fecharem seus estabelecimentos. Terão seus lugares ocupados por alguma loja de celulares ou de apostas. Ainda há poucos meses havia em frente a alfaiataria uma lojinha de canetas com cargas recarregáveis. Eram dois irmãos e faziam até a tinta para canetas com pena. Os irmãos mantinham uma conversa muito agradável sobre as peripécias de seu negócio. Não durou muito e em um belo dia vi as portas fechadas. Não sei o motivo, me disse o zelador Barbosa, mas garantiu que era em definitivo. Dá para desconfiar sobre as razões, quem hoje em dia escreve à mão? E mais grave, quem escreve à mão com uma caneta diferenciada?
Agora,
aqui na mesinha interna do Alma, observo o seu Canuto sentado próximo à saída
da galeria com seu boné republicano, às falas com Barbosa, as pernas dobradas e
o cigarrinho de palha numa das mãos. Penso que leve a vida como um verdadeiro
existencialista: o que vale é o aqui e agora. Na verdade, provavelmente sem o
saber, ele representa um perfeito republicano espanhol existencialista, saído
dos anos 1930 direto para sua sapataria. Eu costumo lhe perguntar sobre a Guerra Civil Espanhola, ele me resmunga respostas. É outro que faz da voz um murmúrio
quase inaudível, ou começo a ter problemas de audição.




